O amola-tesouras passa na minha rua sempre que chove muito e há frio.
Lembro de quando há muito tempo nas traseiras do meu prédio passava o amola-tesouras. Eram manhãs solarengas com céu limpo, e ora soavam harmónicas, ora um apito fino e estridente. Na rua da casa da minha avó, passava o mesmo ou outro, pouco os distinguia. Eram morenos, desgrenhados, passavam de bicicleta, traziam sacos e caixinhas penduradas nas rodas, ou no banco, ou no volante, já não sei, e a sonoridade era a mesma. Contudo, na rua da casa da minha avó passavam ao fim da tarde. Entretanto deixei de os ouvir e de os ver. Parecia-me normal, pois com eles desapareceram todas as figuras e personagens da rua da casa da minha avó. Desapareceu o senhor da mercearia, passou a haver mini mercados com valentes caixas registadoras, que faziam "piii" quando se lhes passavam os produtos por cima. E assim, deixaram de existir aquelas bonecas das caixas cor de rosa junto da prateleira do arroz e do açúcar. Desapareceu o Barbas, que metia medo a meninas como eu. Até mesmo, desapareceu a minha avó.
Incrivelmente, estava sentada numa cadeira da cozinha, de um prédio, mas de outra rua, um pouco mais anónima e triste, quando reconheci a melodia do amola-tesouras. Fui a correr à janela, e a bicicleta era a mesma, o som o mesmo, o aspecto do senhor o mesmo, pelo menos assim me pareceu! Só que caminhava, não em cima da bicicleta, transportando-a ele, e não ela a ele, e debaixo de chuva. Um verdadeiro temporal lá fora, vento, chuva, frio, e ele continuava a soprar na harmónica a melodia saudosa do amola-tesouras. Comentei quase em tom ridículo, mas esboçando um sorriso, «como é possível ainda existirem?» e voltei à minha cadeira ficando-me a ouvir aquela canção até me esquecer.